As luzes somem. O silêncio é breve, logo os músicos dão o ar de sua graça. Lâmpadas de cores frias se ascendem e iluminam a lona. O desenho de um céu cheio de nuvens se forma no teto através das sombras. Um homem corcunda metido em um smoking de veludo vermelho e segurando um mastro surge no centro do palco. É o Fleur, um bobo da corte sem rei de Alegría. A maquiagem lhe da um ar arrogante e um olhar sério. A banda toca cada vez mais alto e o público bate palmas no ritmo da música. O personagem pitoresco guia a banda por entre os espectadores fazendo brincadeiras e gritando: “Alegria!”. Começa o espetáculo na capital gaúcha.
O Cirque du Soleil surgiu em 1984 em comemoração ao 450º aniversário da chegada de Jacques Cartier ao Canadá. Seus criadores e ex-artistas de rua, Guy Laliberté e Daniel Gauthier, queriam inovar os espetáculos circenses, criando um espetáculo que fosse uma mistura de teatro com arte popular, fantasias extravagantes, música própria e um jogo de luzes diferenciado. A primeira apresentação ocorreu em Gaspé, em Quebec.
No fundo, a banda se instala. É composta por um baixista (que também é o regente), um baterista, um homem com um triângulo, uma mulher simpática com um acordeão, um saxofonista e um tecladista. Todos vestem ternos brancos, com coletes de lantejoulas prateadas e botões dourados. Seus rostos são pintados de branco, com narizes compridos, bochechas rosadas e batom azul. Lembram os aristocratas do século XV com suas perucas de cabelos alvos e encaracolados.
Nada de ‘respeitável público’. À medida que a música toma forma, cinco palhaços aparecem no palco. Máscaras e roupas são tão intensas que já não é possível distinguir sexo. São coloridos, usam jóias vermelhas brilhosas, penas amarelas e tiras de tecidos amarradas pelas pernas em tons rosados e púrpuros. Cada um com sua identidade e respectiva máscara. Riem, caem, brincam e seguem a banda. O palco é grande: há três entradas principais, nas laterais e no centro. Nos lados, camas de elástico. Em cima, trapézios.
Um menino, o russo Nikita Moiseev (única criança do grupo), vestindo um chapéu coco e bata amarela, emociona o público com trôpegas palavras em português. Pede a todos que não tirem fotos por causa da concentração dos artistas, balançando os penduricalhos debaixo do chapéu. Atrás dele, usando uma roupa igual, está Tamir Erdensaikhan. Os magos se dirigem para uma lateral do palco. Surge a primeira cantora, Nancy Arnaud, de branco da cabeça aos pés. Vestida de fada, com anteninhas, canta com toda a força de seus pequenos pulmões a música Alergía, escrita por Franco Dragone, Manuel Tadros, Claude Amesse e René Dupere.
Alegría estreou no aniversário de dez anos do circo em 1994 em Quebec. A produção barroca itinerante já esteve em 65 cidades de 17 países diferentes como Nova Iorque, Londres, Paris, Sydney, Tóquio, Rio de Janeiro, entre outras. Sua temática se baseia em política, reis tiranos e ditadores. Ao todo, mais de 10 milhões de pessoas em todo o mundo já assistiram a essa mostra. O objetivo é trazer esperança e perseverança ao público, mostrando que trabalhar em conjunto é possível e que confiança é fundamental. O show explode semiótica por todos os lados, cada personagem tem significado próprio.
Pássaros segurando molduras sem espelhos invadem a pista, notas musicais desenhadas a cada passo dado. Os pássaros são duas mulheres, Evguenia Rochtchina e Olga Vavrenyuk, usando malhas de lycra azul anil. Tocas brancas com cachinhos e penachos vermelhos e azuis cobrem seus cabelos. Sobre os seios, conchas com desenho espiral. Sentam, de costa para a platéia segurando seus boás (mantas de plumas) de tom azul marinho. As notas musicais vão aos poucos diminuindo e modificando-se.
Stéphanie Gasparoli e Brian Beech entram das laterais opostas e juntam-se no meio do palco. Suas fantasias são mais suaves: malhas brancas com adornos vermelhos, azuis e prateados brilhantes. Assim como os pássaros, também usam toquinhas. Sem nenhuma proteção, sem cordas presas aos corpos, sobem em um trapézio juntos. De uma altura de cerca de 10 metros, fazem contorcionismos, flutuando de um lado para o outro com a maior tranqüilidade do mundo. Nem as interjeições de incredulidade do público nem a densidade musical do ar tiram a atenção no que estão fazendo.
Os sleps do contrabaixo ditam outro ritmo. A entrada dos Bronxs é anunciada pela música de Benoit Jutras, Incantation. Nove artistas fazem coreografias ao som de tango. Os ousados movimentos dos macacões dourados representam o Power Track. Nos pulsos usam faixas prateadas. Correm muito rápido, multiplicando-se por todos os cantos. Os palhaços coloridos tentam entrar no jogo, mas são jogados de um lado para o outro. As piruetas são complexas e os dançarinos jogam seus corpos uns por cima dos outros sem nunca se tocarem. Todos os movimentos são muito bem ensaiados mas, apesar disso, quebram o clima e saem do palco.
Os irmãos estadunidenses, Time e Maui Sumeo chegam com tochas de fogo ardente. Usando tangas de couro marrom e maquiagem tribal giram barras de chamas ardentes criando círculos luminosos no ar. Os dois pegam o fogo com as mãos e o espalham no chão, extasiando o público. Fazem uma performance primitiva ao som da música Lubia Dobartan de Helene Dorion.
Marcos de Oliveira Casuo - único brasileiro da trupe – integra o elenco há seis anos, mas está no ramo há mais de 13. Antes trabalhava no Grande Circo Popular do Brasil, do ator Marcos Frota. Após participar de uma seleção no Rio de Janeiro, Casuo entrou para o grupo Soleil como acrobata. Apesar de ter deixado seu país para trás, e adotado o mundo como sua casa, o palhaço faz trabalhos voluntários por todas as comunidades carentes que passa.
De repente, silêncio. Casuo sobe ao palco com seu tradicional topete amarelo, nariz vermelho e sobretudo roxo. Montado em um cavalo de pelúcia zebrado, faz palhaçadas imitando o animal. Pablo Gomiz Lopez sobe assim que Casuo some. O palhaço de barba preta, nariz vermelho, cabelos cresço veste um macacão largo cor de laranja, gravata borboleta e sapatos marrons muito grandes. Sozinho, brinca com um modesto avião de papel.
Mais uma vez escuridão. Um barulho ensurdecedor de motocicleta começa a vir na direção dos espectadores. Uma luz branca e forte dança rápida pelo palco. Luzes amareladas flagram Casuo segurando um guidon de moto. Casuo e Lopez arrancam risos da platéia com suas piadas, às vezes picantes. Assim que deixam o palco, os palhaços coloridos voltam saltitando e preparam o local para mais uma apresentação surpreendente.
O ucraniano chega com soberania. Com o peito nu e uma calça corsário branca, Denys Tolstov para diante de dois mastros pequenos. Após uma pequena dança, sobe nos mastros e se equilibra sobre uma única mão. Seus músculos incham e o suor brota como pequenas gotas de cristais em sua testa. Sua força é monstruosa. Demonstra seu talento e se despede introduzindo a jovem russa Maria Silaeva.
A loira maquiada e vestida como uma bailarina entra com sua fita amarela sacudindo no ar no ritmo da música. Seu colant perolado e bordado com pequenas flores evidencia as formas femininas. Faz com o corpo o que faz com a fita, rodopiando e se confundindo com seu instrumento. Encerra sua apresentação com um show de bambolês. Consegue girar oito: quatro em seu tronco e quatro distribuídos em seus membros. Mais uma vez os Bronxs aparecem, demarcando uma mudança no cenário: é o clímax.
Os palhaços, Casuo e Lopez, retornam com suas brincadeiras. Lopez faz uma encenação que resulta em uma tempestade de papéis brancos picotados em toda a platéia. É a representação de uma nevasca. Quando os sons do temporal cessam e os papéis assentam no colo daqueles que assistem atentamente a cada movimento, Lopez reaparece nas escadarias com um chapéu. Na aba, uma borboleta. São as quatro estações. É hora do intervalo.
Meia hora depois, os atos seguem com maior velocidade. Surge a segunda cantora, a ucraniana Malika Alaoui, toda de preto, complementando as frases versadas da cantora branca. É a vez do Flying Man, Alexander Dobrynin. Segurando-se em um elástico, faz saltos enormes sobre a platéia com suas calças pantalonas brancas e toca azul. Seu rosto não aparenta medo, ao contrário do público. Literalmente, voa por todo o espaço. Os palhaços voltam a brincar no palco, desta vez com pessoas da própria platéia.
Uma legião de homens de branco com coletes dourados, segurando barras de borracha, aparece. São todos iguais. Dividem-se em trios: enquanto dois seguram a barra, o terceiro pula. O pequeno monge participa de um dos saltos, o salto final, que depois é imitado pelos palhaços de forma satírica. O Russian Bars, como é chamado o ato, conta com dez artistas.
Mais uma vez a música muda. Duas meninas da Mongólia entram cercadas pelos palhaços coloridos. Oyun-Erdene Senge e Ulziibuyan Mergen param uma de frente para a outra e esperam os palhaços retirarem suas capas de penas beges. Com perucas azuis e malhas brancas com desenhos azuis e dourados coladas ao corpo as duas se contorcem em um círculo elevado do palco. Em certos momentos é quase impossível saber onde começa uma e termina a outra.
O espetáculo chega ao fim e se encerra se na apresentação da barra aérea elevada, único número que tem uma rede de proteção. Vários homens com roupas que lembram pássaros rodopiam em uma barra de 5 metros no alto da lona branca. Se jogam no ar uns para os outros, em perfeita sincronia. Após o ato, todos os artistas sobem ao palco ao som de Alegría para agradecer a presença dos espectadores. O clima é de euforia total. Todos se levantam e aplaudem, gritam e saúdam os talentosos rostos sorridentes do palco. É hora de ir embora levando um pouco de Alegría.
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