quarta-feira, 18 de junho de 2008

Na trilha da política

Ambrosina Eloá Ferreira Porto abre a porta. Maria Eduarda, sua neta, tem aula de inglês. É cinco e meia, ela começa a falar sem parar. Quem vê nem imagina que essa mulher já viveu mais do que a sua idade permite, e ainda assim acha fôlego para ser mãe, avó e bisavó.
Os cabelos já estão brancos, mas o rosto disfarça sua idade. Eloá, aos 78 anos, tem a mesma aparência que tinha quando moça. O próprio significado de seu nome não poderia ser mais propício a sua alma. “Ambrosina vem de Ambrósia (do grego), que quer dizer divina. Eloá vem do hebraico, e quer dizer deusa”, conta que uma amiga achou os dados na internet. Os olhos azuis brilhantes tagarelam o tempo todo, enquanto as perguntas sobre sua vida a remetem de volta ao passado.
Eloá corre com os irmãos em um campo colorido. As crianças todas sorriem e brincam com os animais. É inverno e faz muito frio. Eloá olha para o céu e sente a brisinha gelada em suas bochechas vermelhas.
Filha de imigrantes nasceu um dia antes da atriz Grace Kelly, 10 de novembro de 1929, em Santo Ângelo das Missões. “Missioneira”, como se autodenomina, teve seis irmãos e uma infância feliz, mesmo com a ausência do pai, que se separou da mãe muito cedo e nunca mais voltou.
A partir dos sete anos, cresceu em Porto Alegre com a mãe, a avó e todos os irmãos. Aos 13 anos, já mostrava sinais da vida que seguiria, começou a se interessar por política sob influências de seu primo Nírio Carreira Machado, deputado federal pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).
Conheceu Tiradentes através de livros de capas duras e páginas, hoje amareladas pelo tempo. “Ele era o meu herói”, ela fala como se Tiradentes tivesse sido seu primeiro amor. Mais tarde, passou a idolatrar Alberto Pasqualini. “Na porta do meu roupeiro, em vez de fotografias de artistas de cinema e rádio, eu tinha uma foto do Alberto Pasqualini”, confessa entre algumas risadas arrancadas de sua memória. Caminha até o quarto e pára diante do roupeiro de madeira maciça de carvalho e abre a porta. Entre recortes de jornais e fotos de família lá está, bem no meio, uma foto antiga e autografada do ídolo político.
Pasqualini filiou-se ao então Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) quando Eloá entrava no auge de sua adolescência, seus 18 anos. “Na minha época não se dizia, não se ouvia falar na palavra adolescência”, lembra dos tempos em que pôde usar seu primeiro batom.
Diante do espelho Eloá admirava sua intimidade. Tinha um corpo bonito e maduro demais para sua idade, todo roliço. Seus lábios carnudos contrastavam com o nariz avantajado. Era uma mulher dura dentro de uma menina. Passou com os dedos um pouco de carmim nos lábios e levantou os longos cabelos ondulados nas pontas em forma de um rabo e ficou ali por horas fazendo poses diante de si mesma.
“Getúlio Vargas e Alberto Pasqualini foram os maiores políticos do Brasil, em caráter e tudo”, Eloá se emociona ao lembrar-se dos tempos em que a política tinha outro aspecto. De repente, olha para o gravador em cima da mesa lustrosa e diz com veemência: “Eu gosto de política, quem sabe até me arrependa de não ter entrado nela”.
Aos 19 anos, casou-se com Idelfonso Antônio Porto, seu adversário na política, pois fazia parte do Partido Social Democrata (PSD), e adversário no futebol, já que era colorado. Eram adversários até mesmo no futebol do interior gaúcho, Eloá torcia pelo Ypiranga Futebol Clube e Idelfonso, pelo Clube Esportivo e Recreativo Atlântico (CER Atlântico).
O casamento foi em Porto Alegre, no dia 14 de dezembro de 1950, um dia antes de Idelfonso colar o grau. Ele perdeu a formatura da faculdade para casar-se com Eloá. No mesmo dia foram para Erechim, cidade do marido. Por causa da pressa, as fotos do evento se perderam no caminho e Eloá não tem nenhuma lembrança deste além da sua memória.
Idelfonso era tesoureiro da Caixa Econômica Federal e havia tirado diploma em Economia. Eloá engravidou pela primeira vez aos 22 anos. E no dia 7 de setembro de 1954 teve seu segundo filho. Maria Beatriz, sua única menina, nasceu no dia 17 de setembro de 1959.
Aos 33 anos, em 1962, juntamente com o marido, três filhos pequenos e um casal de amigos, fez a viagem de sua vida. Em um Ford Vemagheti de 1923, ela e a família saíram de Erechim por Vacaria, seguidos de Ivete Hilda Pinheiro Garramones, seu marido e seu pai, João Pinheiro, em um fusca. “Não existia estradas, as estradas da época eram tudo de chão batido, mas mesmo assim, nós fomos”, relata absorta nos pensamentos.
O calor das pradarias vinha de encontro ao carro que mal tinha cobertura. As crianças dormiam no banco traseiro. Idelfonso, sério, concentrava-se na estrada. Eloá pensava em tudo, enquanto tentava manter os cabelos presos dentro de um lenço, protegidos do vento. Só a promessa de pisar em Brasília a fazia rir sozinha, era a realização de um sonho.
Em um único dia foram direto à Curitiba, onde pernoitaram. Depois foram a São Paulo. “Fizemos uma viagem muito arriscada”, ela menciona a condição das estradas, que estavam sendo ampliadas naquele ano. “São Paulo me assusta até hoje”, diz dona Eloá, que não gosta da capital paulista por causa do grande número de pessoas circulando nas ruas. Partiram para o Rio de Janeiro, onde ficaram um dia e meio. Ela conta que se emocionou com as praias, principalmente com Copacabana.
Os biquínis eram mais curtos que nas praias do sul. As meninas muito mais bronzeadas. Por um momento Eloá sentiu um frio na barriga, sentiu-se uma estranha naquele lugar, quase uma estrangeira. Mas a sensação durou pouco, logo que pisou na areia com seu traje de banho longo e sentiu os pés cheios de pequenos grãos teve vontade de gritar, mas se conteve. Com as mãos agarradas às de seus filhos, caminhou em direção ao mar.
Depois do Rio, chegaram a Minas Gerais. “Antes de chegarmos a Belo Horizonte, conhecemos a barragem Três Marias que estavam recém terminando”. Ela fala em tom exacerbado, fazendo a barragem surgir em cima da mesa e fluir por entre os candelabros de prata envelhecida. Chegaram à primeira estrada de asfalto. A missioneira exclama: “Maravilha!”. Depois de Barbacena e Belo Horizonte, seguiram para Ouro Preto.
“Todo brasileiro deveria visitar Ouro Preto. Para ser brasileiro tem que conhecer o nosso Brasil”. Mais uma vez acende sua grande paixão por Tiradentes. “Nunca pensei em conhecer o terreno, onde existia a casa dele, que foi salgado para não nascer mais nada, mas tinha uns verdes em cima e me emocionei que chorei. Que nunca na minha vida eu tinha imaginado em conhecer aonde residiu Tiradentes.”
Eles visitaram o museu da Inconfidência que ocupa a antiga Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica ainda na cidade de Ouro Preto. Eloá ficou extasiada com o relógio Ômega prateado de bolso, único pertence achado do Tiradentes e que se encontra lá em exposição.
Conheceram também o sino que bateu, conforme a lenda, no dia 21 de abril 1792 cinco badaladas pela morte de Tiradentes, mesmo proibido de bater para sempre. Voltando a dar o ar de sua graça celestial de novo somente quando Brasília foi inaugurada. Dali foram para Pampulha ainda em Minas Gerais. Irrequieta na cadeira, Eloá se disse insatisfeita. “Eu sou mais do clássico do que do moderno”, pois em Ouro Preto todas as construções feitas têm que respeitar o modelo clássico de 1700.
E cumprindo o destino de sua viagem, um dia depois, pararam o carro em Brasília. Levaram uma semana em estradas com péssimas condições para conhecer a primeira e única superquadra pronta. A emoção se dilata em sua face nesse momento. Eloá nunca foi uma mulher comum.
A primeira a saltar fora do carro, praticamente esquecendo-se da existência dos filhos e do marido, Eloá saiu pela rua a examinar cada detalhe de seu sonho perfeito. Maria Beatriz cochilava na traseira da Vemagheti. Os meninos acordavam lentamente, enquanto Idelfonso acendia um cigarro ainda dentro do veículo.
Eloá visitou o palácio através de seu compadre, Manoel Soares Leães, o Maneco. Conhecia-o por causa da sobrinha dele, também natural de Erechim. Maneco morreu aos 78 anos, no dia 7 de agosto de 2004, e foi piloto do presidente João Goulart. Teve seu depoimento transformado em um livro chamado “Meu amigo Jango: memórias de Manoel Soares Leães” (Sulina, 2004) pelo jornalista Kenny Braga.
“Conheci o palácio, um sonho. Fomos ao cinema do palácio, lindo, todo azul, sentei na cadeira da Maria Tereza [primeira dama]. Chovia muito então não podíamos sair para a rua”. Nesses momentos os olhos de Eloá ficam mais azuis do que nunca. Seu marido chegou a ser convidado duas vezes para trabalhar em Brasília, mas Eloá não deixou. Segundo ela foi uma mistura de medo e nostalgia. “Depois em Brasília não voltei mais”, completa extasiada.
Em 1968, seu filho mais velho, Arnaldo Carlos Porto, veio fazer o Ensino Médio em Porto Alegre e seu marido foi convidado para ser inspetor da Caixa Econômica Federal. Então, mudaram-se todos para a cidade grande. Ela conta que voltou a aceitar Porto Alegre somente em 1974, “quando eu voltava de Erechim, aqui na ponte do Guaíba, (...) e eu vi debaixo da ponte do nosso carro, ali na Avenida Castelo Branco, coisa que eu nunca tinha visto na minha vida. Um casal com duas crianças morando debaixo da ponte. E daí, eu me questionei, eu morava no Brigadeiro Sampaio, um belo apartamento (...), minha vida bem estruturada, meu marido, meus filhos estudando (...), como que uma pessoa vivendo uma vida boa como eu não ia aceitar viver aqui”.
Conheceu Montevidéu em 1973 com a excursão do colégio de Maria Beatriz, que tinha então 14 anos. Eloá sempre cuidou da casa, só parou de cozinhar em 1997 quando teve câncer, mas se operou e se recuperou. E depois voltou com todos os seus afazeres com a ajuda de duas empregadas. Pouco depois ficou viúva.
Seus filhos, Arnaldo Carlos Porto (advogado) e Antônio Augusto Porto (médico), saíram de Porto Alegre e foram viver, respectivamente, em Curitiba e Passo Fundo. E sua filha mais nova, Maria Beatriz, teve um casamento turbulento e foi morar com ela junto de seus dois filhos, Maria Eduarda e Tomaz. Em seguida, no ano 2000, descobriu um tumor maligno e veio a falecer, aos 41 anos, deixando os filhos, Eduarda com cinco anos e Tomaz com 11.
Ainda muito abatida Eloá teve que dar adeus à filha, mas tinha que continuar a ser uma mulher forte. Não podia se entregar. Havia ficado com duas crianças desamparadas para cuidar. Era mãe, mais uma vez na vida.
Até hoje os netos moram com ela, agora com 13 e 19 anos respectivamente. “Hoje eu sou a mãe deles, avó e mãe”, Maria Eduarda assente com a cabeça cada palavra que sai da boca de dona Eloá, enquanto acaricia a mão da avó.
Os três moram em um prédio na esquina da Rua André da Rocha no coração do centro da capital gaúcha. Um apartamento antigo, porém bem cuidado. Como toda casa de avó, é cheio de porta-retratos e fotos de família. Além de móveis antigos que carregam o ambiente e diminuem o espaço.
Livros é o que mais se encontra na sala. Ela possui a coleção intera das obras de Machado de Assis, da enciclopédia Barsa e dos romances de Erico Verissimo, entre outros. Sua casa tem um cheiro encantador, uma mistura de comida caseira com cheiro de infância na fazenda. O barulho da Avenida Senador Salgado Filho parece não incomodar Eloá.
Agora já é quase oito horas da noite. Acabou a aula e Eduarda vai para a sala chamar a avó. Eloá cochila ao som da TV Senado, seu canal favorito. Ela acorda e se desculpa. Caminha até a porta sonolenta, mas sempre falando. Agora fala mal do Lula, presidente do Brasil. Sua indignação com a politicagem nas assembléias brasileiras tem bastante fundamento. Ficamos na porta por mais uns 15 minutos. Entro no elevador e a porta deste se fecha. Ao descer os treze andares ainda ouço a voz de dona Eloá, que nunca se cansa de contar boas histórias.

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