domingo, 27 de abril de 2008

Gonzo Jornalismo

Motivada pelo professor da cadeira de Jornalismo Literário, tive que fazer um texto Gonzo. Não estranhem, Gonzo Jornalismo é um ramo do já conhecido jornalismo narrativo, que foi criado e aperfeiçoado, por Hunter Thompson, um jornalista exímio e boêmio. Então, saí à campo para fazer a matéria e aproveitei uma bela estadia no hospital também. O resultado não foi dos mais satisfatório, afinal sou muito séria para esse tipo de coisa, mas corrigidos os erros, libero o texto abaixo para que os caros leitores dêem seus vereditos.

A cura
- Quarenta reais?! Tudo isso?
- Se quiser fazer um trabalho, é o preço que tem que pagar moça! – diz a suposta mãe de santo vestida numa roupa de baiana dois números menor que o seu tamanho.
- Olha, quarenta reais é muito! O que dá pra fazer com 40 reais? – Não tenho um puto no bolso, e agora como vou fazer? Penso.
- Bom, pra fazer trabalho simples é vinte. Mas pra matar a galinha são 40.
- Isso é legalizado? – a gordinha está ficando irritada e me olha da cabeça aos pés, não devia ter vindo de Adidas.
- Olha aqui moça, vai ou não vai pagar? – Ela faz sinal pra um negão parado na porta dos fundos, me ajeito pra sair correndo.
- Ta, deixa eu ver o que eu tenho aqui. – Reviro os bolsos, um chiclete, dez centavos e um papel amassado. Merda. - E pra assistir um trabalho?
- De onde tu é repórter mesmo? – Ela vai cair certo nessa.
- Ah, de um jornal eletrônico não muito famoso, mas a matéria me interessa muito! – Faço cara de santa.
Sentada na Sala de Emergência; sinto meu peito inchar, puxando cada réstia de ar como se fosse meu último suspiro – não, eu não estou cheirando coca. Ao meu lado, pessoas doentes com olhares cansados esperam por respostas. “Quando será a minha vez?”... Posso ver a pergunta se formar no rosto de um velho atrapalhado na minha frente.
Passos rápidos, vozes rançosas. Luzes brancas e brilhantes emergindo de um cheiro insuportável e nauseante de álcool e produtos de limpeza. Hospitais são lugares confusos, verdadeiros labirintos, onde cada minuto é determinante para se achar ou se perder uma alma. Essa fatídica experiência com o Hospital Mãe de Deus se deve a uma alergia mal explicada que me resultou em um breve edema de Glote e um dia de observação.
A loja é pequena e assustadora, cheia de caveiras e búzios. Me apoio em um treco de madeira com uma face esculpida, deve ser uma entidade qualquer, enquanto o negão fala com um outro cara ocultado por uma cortina de contos. A mulher me manda não tocar em nada e imediatamente paro de cutucar um bonequinho esquisito. Segundo ela, aquele era o Exu. Depois dessa, concluo que o melhor mesmo é ficar na minha.
As paredes de um bege que parece ter sido acinzentado pelo tempo derretem com o barulho das ambulâncias lá fora. Uma enfermeira atarracada e moreninha me leva para uma cama numa espécie de UTI da emergência. A sala está calma para um domingo de sol e de jogo. Minha cama fica ao lado de outra, onde está uma velha moribunda, cheia de tubos por todos os lados. Ela se chama Mercí e sofre de Alzheimer, segundo o médico que acabou de sair.
O ambiente desta sala é contraditoriamente alegre. Quase em clima de festa de criança, só faltaram a guaraná e o Totosinho. O contraste é tanto que chega ser assustador a primeira vista. “Poeeeeeeeeeeeeiraaaaa, poeeeeeeeeeiiiiraaaa, levantou poeiiiiiiiraaa”... Enfermeiros sorridentes passam com seus sapatinhos brancos e macabros batucando o chão ao som de Ivete Sangalo. Alguns até dançam.
As galinhas correm pelo pátio tontas atrás de minhocas imaginárias. Painho mandou um menino magro e ranhento de aproximadamente oito anos pegar a mais pretinha e levar para a sala de Cartas. O menino de pés-descalços e aparência débil corre atrás das aves toscas que em mil tentativas frustradas não conseguem alçar vôo. “Cóóóóó...”.
Um dos balconistas, chamado Felipe, fica rabiscando num canto. Minha curiosidade jornalística me abate e quase de súbito puxo conversa. Mesmo morrendo não perco o ar da graça. Sou uma drama-queen. Ele é simpático, me lembra o Tiago Lacerda com seus cabelos de pirata. Ele usa aliança, mas em nenhum momento fala de namorada ou mulher. E conversa vai-e-vem, descubro que o cara cursa Artes Visuais na UFRGS. E trabalha em um HOSPITAL!!! Absurdo, devem ser os remédios. Ele confessou não gostar do ambiente hospitalar, e disse que é por isso que fica na dele desenhando. Um baita dum covarde, isso sim, hospitais são superdivertidos, lotados de coisas estranhas e a morte é sempre fascinante.
Então, como uma agulha que entra na veia a força e toma seu sangue, o menino se joga no chão arenoso ralando os joelhos e segura a galinha. Sua alegria miserável é tanta que quase deixa o galináceo fugir. “Paiiiinho, olha o que fiz”, o menino ergue a galinha no ar como um troféu e corre pra dentro da casa. Tento esconder, mas solto uma gargalhada com a cena. Nos corredores brancos os cheiros se misturam num aroma que mais lembra um cemitério. Velas, incenso, charuto de quinta categoria e sangue.
Uma outra enfermeira hipocondríaca, cabeçuda e agitada, fica falando que acha que sofre de apendicite, pois confessa ter uma dor no lado esquerdo da barriga. Coitada, mal sabe onde fica o órgão que lhe dói. “Aiii... Uiii...”, grita Mercí, completamente fora do ar.
O barulho da Avenida Julho de Castilhos penetra a janela rasgando tudo que está em seu caminho. A fila de pessoas mórbidas à espera de atendimento se estende corredor a fora, pior do que uma fila do SUS. Já passa das cinco horas. Painho pega o bicho das mãos do menino e entra em uma sala macabra cheia de ossos, coisas escuras em jarros e outros artefatos esotéricos que se encontram à venda em qualquer lojinha da Azenha. Ele se diz “possuído por uma entidade”, deve ser alguma gíria nova para “chapado”.
Mesmo amarrada, ela conseguiu romper o cateter que a mantém viva, numa vã tentativa de se deixar ir. Acho que a morte a cutuca sem a menor piedade. Posso sentir seu cheiro, está em todo o hospital. Caminha calmamente entre os leitos escolhendo aqueles que deseja levar consigo.
Na outra ponta da sala há um rapaz sentado que aguarda com as mãos espalmadas nos joelhos. Ele parece desesperado. Painho murmura baixo uma espécie de canto africano e em menos de um segundo gira o pescoço do animal em suas mãos com tanta precisão que os olhos de todos os presentes se arregalam na minha direção em busca de uma explicação sobrenatural. Baixo a cabeça e continuo minhas anotações tentando não vomitar.
“Vamos trocar a fraldinha, bebê?”, um enfermeiro ruivo, gago e muito imbecil fala com dona Mercí que obviamente não entende nada. Estou à espera de um leito semi-privativo faz duas horas, isso que é convênio. A agonia das pessoas se espalha contagiante contrastando com a felicidade enérgica dos enfermeiros que agora se esbaldam ao som de Babado Novo.
As pernas da galinha ainda se mechem involuntariamente e um pouco de sangue negro goteja dentro de uma tigela que julgo ser outro osso. Por um momento temi encontrar o Zé do Caixão por aquelas bandas. Painho, que se diz pai de santo há mais de vinte anos, conta que os melhores trabalhos de Porto Alegre foram feitos por ele, e que já houve um tempo que sua fama era conhecida nos arredores da cidade. Segundo ele, no seu terreiro já passou de tudo, “até encosto brabo em gente famosa...”, afirma o velho negro com sua longa barba branca balançando.
Sete horas. Troca de plantão. Uma enfermeira gorda e sisuda toma o lugar das outras duas. Um velhote preguiçoso vem ver meus sinais vitais, já que os médicos nunca dão as caras mesmo. Me divirto com o jantar, três ervilhas, alguns grãos de arroz e o bife mais suspeito que já vi na vida. Ah, e a clássica gelatina de limão de sobremesa.
O rapaz, que esperava por Painho pacientemente, se chama Fábio e diz que procura algo forte. Penso na possibilidade de encontrar uma entidade ou me deparar com uma experiência sobrenatural naquela hora. Painho assente com a mão como quem diz que já sabe e continua a jogar os miúdos do bicho dentro da bacia. O cheiro é tão forte que os olhos lacrimejam. Fábio busca vingança, seu melhor amigo roubou sua namorada, mais clichê impossível.
Felipe me mostra seus desenhos, todos baseados em super-heróis melancólicos como Flash e Capitão América. Uma loira gostosa vem me buscar para ir pro quarto. Ela parece um anjo, mas daqueles bem safados. Minha colega de quarto parece um trator. E ronca como tal. Sentada na noite escura, escrevo. Sobre a vida, sobre tudo. E aguardo o dia amanhecer para voltar pra casa.
O trabalho se concretiza, é como uma brincadeira de criança, daquelas que se mistura um monte de melecas em uma panela pra fazer feitiços de amor não correspondido. Mas com uma pitada a mais de ilusão. Antes de Fábio sair, Painho lhe adverte de possíveis conseqüências, mas o rapaz não dá bola, tudo que consegue ver são seus chifres de corno manso. As outras salas equipadas com camas abrigam pessoas pálidas que aguardam uma cura física ou mental...
Hospitais e Terreiros são lugares parecidos, e fedorentos. Quase iguais, com seus corredores estreitos e suas portas que escondem bizarrices sobrenaturais. Com suas carnificinas e suas promessas de cura. Cheios de pessoas adoentadas, moribundos, filas de espera e cheiros angustiantes. Por esses lugares uma atmosfera diferente se estabelece criando um mundo totalmente alternativo e excluído do cotidiano.
Os contrastes de realidades que ocorrem nesses lugares, a felicidade e a tristeza habitando a mesma sala como se fossem a ordem natural das coisas. Os rituais e as queixas se misturando todas em um só ambiente. Podiam até criar um hospital-terreiro. Assim, os doentes podiam usar as duas alternativas para alcançar alguma solução para seus males ao mesmo tempo. Se tomar um monte de drogas na veia não der certo, você vai ali num canto e mata uma galinha, roga uma praguinha em alguém, essas coisas.
Sem falar na morte. Circulando pelos labirintos imaginários exalando seu cheiro que causa medo nos pacientes. Satisfeita com as vidas que toma e a depressão que instaura nos viventes que nestes lugares buscam alguma coisa. Alguma coisa que os cure, que os deixe melhor ou simplesmente atenção.

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