sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Afinal o que é felicidade?

Essa pergunta motiva diversas discussões há muito tempo e já foi respondida por vários filósofos e autores. Porém, quando tratamos de felicidade nos meios de comunicação, do que estamos falando e quais as consequências disto? O comunicador e professor João Freire Filho encara amplamente essa questão no seu mais recente livro Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade (2010).
A obra, que reúne especialistas de diferentes setores num conjunto transdisciplinar de reflexões, trata profundamente dessa revolução da felicidade aderida pela corrente da psicologia positiva atual. Percorrendo outros campos de conhecimento, o objetivo do volume é analisar os impactos subjetivos na sociedade gerados pela constante busca da vida feliz e não, como indica Freire Filho (2010, p. 22),
[...] promover um esforço concentrado para desvelar, enfim, a verdadeira felicidade, presumivelmente ofuscada por prescrições e relatos oriundos do campo psi ou da arena midiática. [...] não se trata de buscar reconstituir o que o referente felicidade poderia ser em sua forma ou estado fundamental.
Tomando esse curso, o autor esclarece que é necessário refletir e colocar em discussão os roteiros duvidosos difundidos recentemente, os quais estão tão disseminados que se afiguram como irretocáveis e imperiosos. Com um excelente e variado referencial teórico, Freire Filho (2010) se baseia principalmente em Morin (1984, p. 124) e sua declaração, já bastante difundida, de que “a felicidade é o leitmotiv da cultura de massa”.
Porém o pesquisador busca fontes mais antigas, resgatando o pensamento crítico da escola de Frankfurt, a psicologia de Foucault e a contribuição filosófica de pensadores como Descartes, Heidegger e Nietzsche, para elucidar esse novo resgate de valores e a constante construção de políticas públicas para a prosperidade.
Afinal, a felicidade tem sido hipervalorizada e se tornou nosso objeto central de consumo. O discurso sedutor difundido pelos meios de comunicação impõe a vida feliz como um direito social, um passo para o progresso virtual da humanidade. A mídia insinua que se você não é feliz é porque possui algum problema, algo em você está errado, esse é o clímax das ideias de Freire Filho (2010).
Será que esse é um direito da mídia? Ou, melhor ainda, qual o papel da mídia nesse sentido? Historicamente, os meios de comunicação vêm promovendo o ser feliz, o bem-estar e a autoajuda como um must have. Entretanto essa injunção da felicidade alheia para dentro das nossas vidas pode ter um efeito negativo. Esse culto à sociedade do espetáculo é bastante excludente. Só pessoas perfeitas podem participar. Aquelas estão incapacitadas de alcançar um patamar exigido pela mídia se tornam pessoas frustradas.
Para curar esses seres frustrados, deprimidos, surgem novas alternativas psicológicas (FREIRE FILHO, 2010). Bem como aparecem novas doenças, favorecendo a indústria farmacêutica. A ciência se coloca em prol da causa, estimulando os governos a medirem o nível de satisfação do seu povo. A inserção de metodologias de pesquisa do índice de felicidade provocou debates e até mesmo um projeto de lei.
Uma proposta de emenda à Constituição (PEC) estabelece “busca pela felicidade”[1] como um direito do brasileiro. O projeto conta com o apoio do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) e já está tramitando. O texto complexo cita a França e os Estados Unidos da América (EUA) como exemplo de países que incentivam a busca individual pelos direitos sociais.
Diversos fatores viraram, então, sinônimos de infelicidade. Entre eles o tédio, a insegurança e a questão visual do corpo entraram para o topo da lista. Ser humano já era difícil, agora, na era da felicidade compulsiva e compulsória (FREIRE FILHO, 2010), há mais um fardo para se levar.
O polianismo[2] não sai de moda. Ser alguém otimista, de bem com a vida é ser autêntico. Taylor (2011) aborda a autenticidade através do multiculturalismo. Para o autor, a identidade é subjetiva e suas linhas de investigação se baseiam em uma concepção hermenêutica, unida ao simbolismo e ao humanismo, conferindo à linguagem a articulação dos significados.
Essa questão acaba sempre levantando a discussão sobre narcisismo, uma influência direta na cultura da autenticidade onde a busca pelo ideal fidedigno é o fator principal. A condição humana parece impossível ao privilegiarem-se as diferenças singulares de cada pessoa.
Sendo assim, se ser feliz é ser você mesmo, irrompe aí uma tensão com a conjectura de que todos devem ser felizes. A auto-realização passa a ser egocêntrica, motivada pela caça do bem-estar particular. No entanto, se todos gozam do mesmo estado não há autenticidade, logo é necessário que haja um conflito, uma disfunção social. É preciso que exista a infelicidade e a felicidade, ao mesmo tempo, bem como diversas outras condições no meio.
Taylor (2011) declara que quando o eu passa para um local de destaque, a indiferença perante todos é estimulada. O buffered self (o eu protegido, na tradução) determina a liberdade, uma vez que o eu é intocável. A própria legislação – brasileira, americana e francesa – expõe isso através da ideia de que cada pessoa é única e tem seu direito individual garantido: a tal liberdade de escolha.
Se somos seres autênticos e com liberdade de escolha, por que a mídia insiste no tema da felicidade? A governabilidade subjetiva é um dos porquês. Ser dono de si, estar no comando da própria vida é um incitamento para os veículos pautarem o assunto. Em seus artigos, Freire Filho (2010) culpa as mídias pela angústia que essas causam ao impor esse raciocínio.
A sociedade é uma ilusão, uma ficção coletiva. A indigência de se harmonizar a ela atormenta as pessoas. Até mesmo a expressão fitness do inglês, que significa to fit in (enquadrar-se, adaptar-se, na tradução), representa essa pressão vivida pelas massas (FREIRE FILHO, 2010). É a lógica do no pain no gain, sem suor nada se conquista. A felicidade está à venda. Podemos obtê-la pelos mais variados preços.
Essas atitudes só contribuem mais para a degradação dos valores da sociedade. Fica cada vez mais difícil atingir um nível satisfatório de felicidade. E quando se alcança, novas metas são estabelecidas. Ficamos sujeitos a essa eterna procura.
A mídia se aproveita da situação para nos estimular, afinal somos fieis consumidores da vida feliz. Quem não quer ser feliz? Quem, no fundo, não deseja realizar seus sonhos? Por mais pessimistas que possamos ser, acabamos devorando aquilo que nos é oferecido em matéria de felicidade.
Quando não há maneira de obter aquilo que nos é essencial, nos depreciamos, nos sentimos fracassados. Porque, de certa forma, é nosso papel ser feliz, acima da autenticidade. Não nos é permitido assumir a derrota ou dar a batalha por vencida. O otimismo está em alta e nos move. Precisamos levantar a poeira e sorrir para as câmeras. Sem isso, não nos é concedido o direito de pertencer.
Os excluídos da felicidade acabam gerando novos transtornos para engrossar o caldo da psicologia positiva. Surgem continuamente diagnósticos e promessas de remédios para curar todo tipo de mal. Não se pode ser infeliz por simplesmente ser. A culpa da infelicidade é nossa e nós temos de resolvê-la.
Todavia essa onda, morosa, não vai durar para sempre. Tanto a mídia como o público precisa acordar para a realidade latente. Não podemos nos deixar levar pelo polianismo o tempo todo. Aliás, para nenhum dos extremos: não queremos favorecer os positivistas e nem a indústria farmacêutica. A vida é feita de altos e baixos.
Os veículos de comunicação devem abrir os olhos para pautas mais relevantes. Existem outros assuntos ligados à felicidade e ao bem-estar. É possível dar ao tema diferentes approaches, que não sempre os mesmos. Há tanta coisa pautável lá fora; às vezes é só uma questão de sair por aí e ver o que realmente acomete as massas.

REFERÊNCIAS
FREIRE FILHO, João (Org.). Ser feliz hoje: reflexões do imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
_______. O poder em si mesmo: jornalismo de autoajuda e a construção da autoestima. Famecos, vol. 18, nº 3, 2011, p. 717-745.
MORIN, Edgar. Felicidade. Cultura de Massas no século XX: o espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 132-141.
TAYLOR. Charles. A ética da autenticidade. São Paulo: Realizações, 2011.




[2] Pollyana é a personagem principal do romance de Eleanor H. Porter, publicado em 1913. Por seu otimismo e positivismo diante dos infortúnios da vida, seu nome virou sinônimo de pessoa extremamente feliz e inclusive encontra-se em alguns dicionários. Disponível em: <http://dictionary.reference.com/browse/pollyanna>. Acesso em: 31 mai. 2012. 

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