Matéria produzida para o impresso experimental da Famecos, Jornal da Manhã (edição número 11 - dezembro de 2010)
Gabriel Garcia Marquez se deixou impressionar pelos efeitos agudos das enfermidades do século XIX e, em 1985, lançou o romance Amor nos tempos do cólera. O escritor português José Saramago, combalido por uma perda inexorável e progressiva da visão, igualmente não poupou palavras para descrever a devastação que uma peste pode causar em seu livro Ensaio sobre a cegueira, publicado em 1995. O que essas obras tem em comum é a palavra epidemia que, originária do grego, significa: “sobre todos”.
Não é de hoje que o vocábulo assusta ao ser pronunciado. Durante o caminho da humanidade, um inúmero contingente de doenças contagiosas causou tamanho horror que criou divisões em períodos da história. A peste negra dizimou um terço da Europa durante a Idade Média e é conhecida até os dias de hoje como um dos piores surtos bacterianos.
Nessa época, era comum o uso da religião e de rituais caseiros como tratamento. A historiadora e diretora do Museu de História da Medicina (Muhm), Juliane Primon Serres, esclarece: “Como a medicina não conseguia desvendar mistérios envoltos em epidemias, a Igreja se aproveitou disso para conseguir mais fieis. A doença passou a ser uma punição divina, uma resposta para o pecado.”
Em 1918, enquanto todos presenciavam o fim da Primeira Guerra, a gripe espanhola matou 40% da população mundial, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Conforme Paulo Michel Roehe, virologista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a rápida disseminação se deu por causa do transporte e deslocamento das tropas. “Desde essa época, as amostras que circulam em humanos são H1N1, H2N2 ou H3N2. Os vírus de gripe possuem duas proteínas importantes em seus exteriores: a hemaglutinina, que dá origem ao H; e a neuraminidase, que representa o N”, clarifica o professor.
A partir da industrialização e do fim da sacralização do corpo para estudos científicos, houve um grande avanço da medicina. “Com o surgimento das sociedades, do progresso, aumentou o contato físico. Isso é um pouco paradoxal, porque, ao mesmo tempo em que nasce o individualismo, o indivíduo não está mais só”, afirma a historiadora.
O acúmulo de pessoas em locais fechados fez com que o homem trabalhasse o controle sanitário. Juliane explica que a ideia de salubridade, de cidade limpa, emerge no século XVIII para ponderar a aglomeração resultante do crescimento urbano. A domesticação de animais foi outro fator que colaborou com a disseminação de moléstias. O contato diário permitiu adaptação dos vírus em hospedeiros humanos.
“A importância do estudo das epidemias para a história é exatamente essa: a organização e a desorganização social. Essas questões modelam o nosso comportamento, até a linguagem médica passa a fazer parte do cotidiano, a sua dialética provém do vocabulário militar”, comenta Juliane. A abundância de ocorrências causava a desestruturação de grupos sociais. Enquanto as metrópoles cresciam, uma parcela da população se refugiava no campo com medo de contágio.
A descoberta da imunização mudou novamente o rumo da medicina. “Estudando as mulheres responsáveis pela ordenha das vacas, Edward Jenner descobriu que a amostra presente nos bovinos tornava os humanos imunes à varíola”, conta Roehe. O professor descreve que as primeiras noções de vacinação se baseavam em transmissão em série, através de amostras sanguíneas, de uma pessoa curada para todos que ainda não contraíram determinada doença.
Vacina deriva de Vaccinia, o agente infeccioso da varíola. “A vacina tem efeito homeopático, pois ela é a inoculação do vírus. É uma dose reduzida do que seria o veneno para o combate da doença. Não é batalhar com algo contrário a doença, mas tentar lidar com o próprio vírus”, acredita Juliane. Porém, apesar de seus benefícios, as vacinas nem sempre foram bem vistas. No Rio de Janeiro, em 1904, a Revolta da Vacina deixou sequelas na contemporaneidade. A própria campanha contra a gripe A, em 2009, mostrou que o pânico fez com que muitos resistissem à imunização.
O alarme em torno da gripe A, nos últimos três anos, se deu por se tratar do mesmo vírus da gripe espanhola. Em aves existem em torno de 16 hemaglutininas e 9 neuraminidases. “Por isso, eventualmente surgem problemas como a gripe aviária, o H5N1. Não é uma amostra que normalmente circule em humanos, contudo num certo momento ela conseguiu pular essa barreira de espécie”, exemplifica Roehe.
Toda epidemia possui uma curva de andamento, elas não duram para sempre e raramente acabam com uma espécie. “Quando se tem uma ampla população não resistente, ocorre um grande pico de casos. Uma parcela, maior ou menor, vai morrer. Outra vai ter a infecção e sobreviverá. Alguns tem a doença, mas subclínica, sem sinais. Até que surja uma população resistente”, declara o especialista.
Um exemplo recente desse ciclo foi a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS). Nascida na China, em 2002, a enfermidade contaminou boa parte da Ásia. “Não chegou a ser uma pandemia e ficou restrita a um continente, porque essa amostra não estava tão adaptada a humanos que permitisse a difusão de uma pessoa para outra”, crê Roehe.
Os vírus, as bactérias e vários outros microorganismos possuem uma função e fazem parte da teia alimentar que inclui todos os seres vivos. O professor de virologia ressalta: “Pandemias sempre vão ocorrer, de tempos em tempos. A chance sempre existe, mas hoje em dia todos estão muito mais alerta. A vigilância sanitária e a agilidade são maiores e melhores.”
Número de pessoas com AIDS preocupa
A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) é considerada uma pandemia global. A Joint United Nations Program on HIV/AIDS (Unaids), órgão criado pela OMS em 1996 para combater o vírus, estima que 15 mil pessoas sejam contaminadas por dia no mundo.
A África é o continente mais afetado, 20% da população da África do Sul possui HIV. No Brasil, mais de 730 mil pessoas enfrentam a doença. “A falta de prevenção no início da propagação permitiu um intercâmbio de amostras”, aponta Paulo Michel Roehe.
Os primeiros registros de mortalidade pela doença datam de 1969, porém sua origem ainda é motivo de debate para a ciência. Outro mistério é a cura, impossibilitada pela mutação contínua do vírus e sua capacidade de inserção em células humanas. “No caso da AIDS tem o problema de que a variabilidade antigênica é muito grande, o vírus varia muito mesmo. É praticamente impossível o desenvolvimento de uma vacina que defenda alguém de todas as amostras”, informa o virologista. Ele ilustra que o vírus não coevolui com o homem, dificultando as pesquisas focadas na sua erradicação.
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